vejo com cuidado tudo que vem com hype grande. o filme da barbie estreia com uma campanha tão forte, que aparenta cair no interesse de todo mundo, inclusive das feministas que tanto tecem críticas aos modelos de padrão impostos por filmes como, surpresa surpresa, da barbie.
minha irritação aumenta no momento em que percebo que vou ter de, não só ver o filme, mas ir ao cinema pra ver já que desagradar minha princesa não é dos meus objetivos de vida. lá vão 50 reais que podia gastar em cordas de violão, conserto do meu pedal, comprar camisas básicas, ou em cebolas.
ter ryan gosling e margot robbie em personagens feitos pra exaltar a beleza e persona de atuação de ambos ajuda a diminuir meu pé atrás. greta gerwig na direção também. ainda que eu mantenha a opinião de que é só um filme mainstream, feito pra levar pessoas ao cinema no shopping e saírem da sessão direto pra rihappy procurar a barbie "just plain", citada no final da película.
de qualquer forma, é um filme divertido, com piadas autorreferenciais muito boas, e com um subtexto sobre o patriarcado e feminismo que acho deveras importante de ser explorado, inclusive num review próprio.
barbie estereótipo vive no mundo da barbielândia, uma espécie de mundo invertido em que as barbies comandam, são médicas, presidentes, arquitetas, etc etc etc. o mundo de sonho de uma feminista média pouco letrada, em que o patriarcado não somente inexiste, mas no qual as barbies comandam, moram em mansões e têm sua posição social definida (presidente, médica, arquiteta, etc etc), enquanto o valor dos kens existe somente a partir da apreciação dirigida pelas barbies a eles.
esse mundo de sonho começa a ser afetado pelo "real" a partir do momento que a barbie pensa na morte e ganha celulite. ela procura a barbie estranha, tão usada e brincada que teve cabelo cortado e uma maquiagem estranha feita na cara, pra entender o que está acontecendo.
um portal foi aberto entre a barbielandia e o mundo "real", pois a dona da barbie estereótipo parece começar a ter pensamentos de morte, e a barbie precisa fechar o portal, salvando sua dona, pra voltar à felicidade da barbielandia.
nessa viagem ao mundo "real", em que a estereótipo acidentalmente leva o ken só pra ele descobrir a "maravilha" do patriarcado, barbie descobre que as mulheres são assediadas na rua, não mandam em nada, são objetificadas, e no qual ela mesma é ridicularizada por estabelecer um padrão de beleza ideal e nada condizente com a mulher "real".
ela convida, então, a mãe e a filha "reais" pra conhecerem a barbielandia (e, consequentemente, fechar o portal) pra então descobrir que ken transformou a barbielandia no patriarcado: os kens festejam, são servidos de cerveja pelas barbies que sofreram lavagem cerebral, e "comandam" a kenlandia, ainda que fique óbvio que o que ken mais quer é impressionar a barbie nesse processo.
pra salvar as barbies da lavagem, agora quem dirige a missão é a mãe: com um discurso sobre o que é ser mulher no mundo "real", a mãe consegue fazer com que as barbies voltem à consciência, retomem o poder, e a barbielandia volta à ser um mundo dirigido por mulheres, mas com a maior participação dos kens, e maior igualdade entre os gêneros.
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o filme é uma ótima introdução ao feminismo, demonstrando o funcionamento do patriarcado, como ele afeta as mulheres e homens e como é importante que possamos caminhar para um mundo de menor desigualdade entre os gêneros.
algumas cenas e soluções do filme me impressionaram, particularmente quanto ao personagem do ken, obviamente, como homem branco hétero cis de classe média, eu quero me ver retratado no filme (como não houvessem 99% das produções dirigidas a esse mesmo recorte, mas tudo bem, eu paguei o ingresso, quero me ver no filme).
a cena em que o ken diz que se desinteressou pelo patriarcado quando descobriu que não era tanto sobre cavalos é uma das partes que mais me interessou, porque demonstra a ingenuidade e fragilidade do personagem, que encontrou nos elementos de identificação masculinos uma identidade fácil, mas que não necessariamente representava sua essência.
o ken é um personagem tão ingênuo que pode ser descrito justo pelo estereótipo da "loira burra" das piadas, mas alguém cujo interesse era impressionar a barbie, ou seja, cujo interesse neurótico se encontrava em satisfazer a barbie.
é exatamente o que acontece com os adolescentes como meu irmão que procuram a figura masculina que satisfaça a mulher "ideal", que só existe no imaginário deles, e acabam entrando no mundo dos redpills, de exaltação do ideário masculino sobre o feminino real.
mas o filme é bastante sensível, e nada clichê feminismo-mainstream nesse ponto, em que expõe a fragilidade e insegurança desse ken que virou redpill, a fim de mostrar que, afinal, o patriarcado oprime também os homens, estabelecendo figuras ideais, e fazendo homens quererem ser esse ideal que satisfaça o outro, no caso, mulheres.
outro ponto interessante se dá no momento em que há a aceitação, por parte dos kens, de que barbielandia volte a ser comandada pelas barbies e uma frase meta surge: "eles então poderiam ter o mesmo poder que as mulheres tem no mundo real". interessante, pois não propõe resolução fácil para o conflito entre os gêneros, e deixa explícito o limite imaginativo do próprio filme.
o ápice do filme talvez se dê no momento do discurso da mãe, que deixou o cinema em lágrimas. e é a partir dele que podemos tecer a crítica maior.
se é um filme que pretende trazer o mundo "real" na tela protagonizada pela barbie, por que não explorar mais a personagem da mãe? ela só aparece de forma importante no filme ali do meio pro final, e não é bem desenvolvida. e, claro, por isso as aspas aqui nesse texto, ela é inserida pra retratar uma média da mulher real no filme, só que faz o inverso: a mãe retratada é casada, tem uma filha, trabalha como secretária do CEO num escritório de uma multinacional... ok, ela é uma mulher latina, mas pouco há na sua personagem de uma mulher média, na verdade. ela é uma mulher média se o recorte for de mulheres estadunidenses, e ainda assim poderíamos dizer que é uma mulher muito bem sucedida com crise existencial, algo que muitas mulheres podem não ter tempo pra ter.
e esse é o ponto central da crítica: o filme tenta trazer o mundo real pra tela, tenta fazer um comentário social construtivo, tenta fazer autorreferência de forma irônica e crítica a fim de que, senão de recuperar e resguardar a importância das bonecas para a geração de mulheres que foi ao cinema nessa semana? e que mulheres puderam ir ao cinema, e que mulheres não puderam ir? como vi numa notícia no instagram do intercept, com que acessórios vem a barbie uber? e a barbie ifood?
fundamentalmente, o interesse do filme nos aparece logo que saímos do cinema. não para que possamos refletir sobre o patriarcado, e o que seria uma sociedade feminista de fato, mas pra que as lojas do shopping possam se encher e esvaziar de vitrines de rosa, e a rihappy e planeta brinquedo sejam frequentadas e a sessão de bonecas se encha de consumidores ávidos por uma boneca que agora não seja só uma loira bonita de seios grandes e burra, mas uma loira bonita de seios grandes e com consciência social.